CRÔNICAS

Natal do Salim
Edson Areias

No saguão do aeroporto, neste ir e vir sem fim, dou-me conta de escrever no verso do contrato de locação do auto que me serviu em deslocamentos por terra no mês de novembro de 2005.


Este 2005 que se esvai, marcado pela decisão definitiva que tomei em suas primeiras horas, ao som da orquestra castelhana em Rivera, Uruguai, bem na fronteira com a querida Sant'Ana do Livramento.

E dou-me conta, também, que as palavras saltam do coração ao papel, nas tintas desta Mont Blanc gentilmente regalada pelo Comandante Carlos Douglas, meu querido amigo "DC 3", meio rude e inteiramente confiável, ao invés de saltarem direto à tela deste novo computador portátil, como usual.

E é Natal e Natal tem a ver com o viver gaudério do rabino de Nazaré, de seus pais sem-teto e dos errantes Reis Magos que eu cria "reis magros" na infância distante.

E onde entra o Salim na minha história? Salim entra como exemplo de natureza gaudéria de nossas raças, da bendição que o Altíssimo derramou sobre o Brasil, e, mais especificamente, em sua predestinação de ser "a casa de oração de todos os povos", como profetizou Isaías.

Reencontrei meu irmão Salim, que povoara os melhores momentos de minha infância nos anos 50 do Colégio Batista, através do livro de minha lavra "Mar, Meu Chão" levado ao prelo em 1987.

Nele, descrevi quão maravilhoso é viver numa terra em que, malgrado todas as dificuldades, a graça do amor e da tolerância confere cores mágicas à convivência humana.

Dizia que no Colégio Batista conviviam etnias, culturas e religiões longe de patrulhamentos e de preconceitos; descrevia meus folguedos com Ronaldo Afif Abdouche, Paulo Luís, Salim, cada um com um rosto ,uma origem geográfica distinta; registrava não saber se o Salim, o hoje renomado cirurgião plástico Dr. Salomão Forti, seria árabe ou judeu...

Meses após o livro vir às ruas, um belo dia o telefone soa - ainda não era o tempo dos celulares- e a voz amiga me saúda: Salim me explicou ser judeu sefaradi, de raízes no Líbano, e, malgrado haver estudado em escola confessional cristã, jamais deixara de freqüentar a sinagoga nas épocas festivas. Afinal, arrematava, o Cristo seguira todo o ritual judaico e pregava nas sinagogas.

Uma grande página da vida escreveu-a seu pai, quando Salim se apaixonou e resolveu desposar uma gói, expressão que designa os que não são hebreus.

Seu pai exprobou os fundamentalistas taxando-os de preconceituosos e de olvidarem que uma das maiores mulheres de Israel não era judia... e, de tal modo, Salim se casou com uma gói.

Este Natal é do Salim; porque ele simboliza a integração de credos, etnias e nacionalidades sem descartar nenhuma delas. Salim é um homem do Mundo e da Ciência, mas o Altíssimo o tomou como instrumento de sua Glória a sinalizar que os homens e mulheres podem e devem buscar a paz. Isto não provém de ti,
querido Salim, isto provém do Altíssimo.

Às irmãs e irmãos de todas as etnias, credos e nacionalidades; aos crentes e agnósticos; aos que amei e aos que em minha pequenez quis mal; aos que cuidam dos pobres, dos desvalidos de toda sorte: que o Senhor os abençoe e guarde.

Agradeço por vocês terem povoado minha existência; como humano, pecador e fraco, não hesito em reconhecer que orando por vocês, por via reflexa, estou orando por mim; e, mais, por todos os outros  aos quais não foi dada a graça de serem leais, bons, puros e brilhantes como vocês são .

Este Natal é do Salim; e é em sua gentil pessoa de olhos bons e sorriso levantino que saúdo a todos:

FELIZ NATAL, SALIM !!!


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Um pequeno Conto de Natal
Ivan Draxcler
Conde von Draxcler
Encerrava-se o ano de 1962, o mês era dezembro, e o local Boston (EUA). A noite de 24 para 25 de dezembro estava quase em seu final. A neve cobria grande parte do píer onde estava atracado, primeiro contato com a neve muito branca e fria.

Sem ter destino certo o tripulante vaga pela rua à procura de um telefone. Ninguém por perto, anda que anda e mais adiante, bem mais adiante, encontra um telefone público.
Hello operator? I wanna make a call to Rio de Janeiro”.
A call to where? To Rio de Janeiro”, e ela responde: “Honey, are you prepared to pay the price of the call?
 Ele diz sim e pergunta quanto. Ela responde simplesmente, “try to change 25,00 dollars in quarters and I’ll tell when to stop”. Simples assim. Desliga o telefone, olha em volta e nada que se pareça com uma loja ou coisa assim.
Caminha mais alguns quarteirões e encontra um bar, onde um sonolento barman, olha para ele com cara de outro mundo. Para melhorar o clima ele pede um 7/7, beberica com prazer e se prepara para a pergunta fatal. Mexe e remexe nos bolsos e coloca sobre o balcão exatos 25 dólares. E então com a cara mais deslavada do mundo, diz: “Can you change this into quarters? I wanna make a call to my hometown”.
O barman respira fundo, coloca a mão sob o balcão e produz um saco cheio de moedas de 0,25 centavos, e diz “You’re not the first to ask this, this time of the year, help yourself to count”.  
Contado exatos 25 dólares , agradece repetidas vezes e volta para a rua buscando o orelhão. Encontra o mesmo e repete o diálogo, desta vez acrescentando que tem muitos quarters para a chamada.
A chamada é completada e ouve a voz daquela que sempre esteve ao lado dele desde seu nascimento, e agora estava tão distante. Palavras são ditas, lágrimas escorrem e congelam e a cada instante ele ouvia o tilintar das moedas caindo a medida que os minutos se passavam. Muito pouco foi dito pelo tanto que deveria ter sido, mas a voz embargada não deixava, beijos, beijos, saudades muitas e uma voz ao fundo dizia ”Honey your time is over, but I Will give one minute more”. Assim ela fez e a conversa ficou no éter e na distância.
De repente, não nevava mais, não fazia frio, as lágrimas já tinham secado e o coração pulsava mais forte e contente. Ele volta para bordo, para o aconchego de seu camarote e aguarda o fim de mais uma Noite de Natal.
Este tripulante era eu em minha viagem de fim de ano com o velho, e hoje sucata, Lóide Haití.

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AMORES MARINHEIROS*
Por CFM Edson Martins Areias





Ao saberem que alguém é marinheiro mercante, a pergunta- afirmação que aflora à mente e aos lábios das mocinhas casadoiras, seus pais, irmãos e amigos concerne o tal do “um amor em cada porto”. O sisudo e sincero Chefe de Máquinas Rubem Brandt ensinava que a assertiva encerra a mesma (in)correção se o “um amor em cada porta” viesse a servir de parâmetro para definir o comportamento dos varões “terráqueos”. É bem verdade que a solidão das travessias, a fatigante rotina de bordo e a distância do lar inspira(va)m sim, uma carência afetiva muito mais acentuada que a relacionada à mera sensualidade; o efeito de ambas, sensibilidade e sensualidade, entretanto, varia(va)m em função do cabedal intelectual e espiritual de cada homem do mar. Muitos eram atraídos às lides marinheiras pelas aventuras, nelas incluídas as amorosas; nos anos trintas e quarentas, após o terror das guerras, os marinheiros pousaram os pés numa Europa empobrecida onde mulheres, até adolescentes, lhes abordavam, humildes, à busca de alimentos, bebidas, cigarros ou mesmo de desinteressado afeto, em tempos marcados por toda sorte da carência reinante no Velho Mundo.

Alguns mercantes vieram a desposar eslavas, polonesas, alemãs, francesas, holandesas, inglesas, escandinavas e até japonesas que vieram residir no Brasil. Havia quem afirmasse que “marinheiro gosta mesmo é de terra miserável, onde é tratado como rei; não de países ricos onde é ignorado e tudo é caro e difícil”. Havia gente que declinava das viagens ao Exterior, preferindo navegar ao longo da costa, na “linha da lama”, que ia do Rio Grande ao Amazonas; uns poucos, num verdadeiro malabarismo náutico, navegaram o Rio Madeira, a bordo de um “mula manca” navio de seis mil e quinhentas toneladas, indo aportar na remota Rio Branco, capital do então Território de Guaporé, hoje, Estado de Rondônia, com festiva acolhida da imprensa e da população.

Em várias partes do Brasil a visitação aos navios mercantes nos portos, máxime nos fins de semana, arrebatava famílias inteiras que se deslocavam até mesmo do interior dos Estados; as tripulações, então, caprichavam na apresentação pessoal, arrumavam os camarotes, enfeitavam salões e
corredores, e, não raro, aconteciam flertes, namoros, discretos encontros íntimos e até noivados e casamentos. Alguns comandos e autoridades portuárias obstavam as visitações, quiçá acreditando estarem laborando na salvaguarda “da integridade física das donzelas, da moral e bons costumes”. Quanto mais atrasado o país, mais forte vogava esta diretriz. Na Europa, principalmente na Noruega, não havia sequer muros, cancelas ou portões no cais; até as crianças vinham brincar no convés coberto de neve, quando não havia movimentação de carga. As tripulações tentavam burlar as proibições - onde e quando existiam. A tarefa, porém, não era muito fácil porque, além da segurança portuária, havia-se que burlar o quarter master que guarnecia, “a pé de galo”, a escada do portaló, qual atento cão de guarda, caxangá alvíssimo e navalha à cinta, indefectível lâmina que integrava o figurino de mestres, marinheiros de convés e moços a bordo.

Na linha do Norte da Europa e Escandinávia, o tripulante era adestrado por seus pares e superiores, assim que embarcava, quanto à voga a seguir: devia aprender, por exemplo, que a moça ou o grupo de moças que subia a bordo não eram mundanas; adentravam o camarote, às vezes, apenas para conversar, nada mais; podiam beber a noite inteira e, de repente, dizer adeus e sair, após um breve e respeitoso aperto de mão. Também aprendia a não se insinuar para moças acompanhadas e a não se sentir ofendido quando uma outra viesse a preteri-lo por algum outro colega, deixando-o a falar sozinhos. Buscar briga com seus pares pelo (pretenso) orgulho de macho ferido, nem pensar!

Hoje, com os meios de comunicação ligando norte e sul, leste e oeste, campo e cidade, passar tais valores seria bem mais fácil. Algo estranho aos terráqueos era o fato de toda moça casada que pisasse a bordo, independente de idade, ser tratada de senhora, ainda que fosse conhecida ou de sua família, lá em terra. Se um colega embarcasse com a esposa, até os bandidos passavam a se portar com discrição para reforçar a tese de que os casados e noivos se conduziam bem durante as viagens.

Numa estadia, em Aalesund, Noruega, um agente chamou-me a jantar; mencionei um colega e meu interlocutor foi de precisão cirúrgica ao, diplomaticamente, comentar que o convite não havia se estendido a ele porque, casado, havia sido pilhado, aos beijos com uma moça da cidade...
Em minha primeira docagem no Exterior, no Presidente Deodoro, permanecemos por várias semanas, no Bethlehem Steel Shipyard, em Baltimore, Maryland. Eram tempos de guerra do Vietnam e a população feminina era visivelmente superior à dos varões. Seguidas vezes chamei meu colega Ivanir Ferreira Magalhães para acompanhar-me ao “Ship Café”, local decente, onde havia boa música; ele declinava, por ser casado, à alegação de que eu lhe estava a propor um programa para solteiros; ele só baixava terra com o Comandante Sabatié e o Imediato Euclides Alcântara, ambos, com as respectivas famílias a bordo Quase todos guardavam, vida afora, um comportamento recatado, sendo impensável que se jogassem nos braços das gringas. Mas a maldita fama – da mulher em cada porto - se propagava,
quando é sabido que entre o pessoal de terra, as escapulidas podem ser mais fáceis, frequentes e discretas.

Eu era eu solteiro, subchefe de máquinas, quando embarcou no “Frigo Tietê” um oficial de máquinas mais maduro, da turma do Comandante do navio, à época, o simpático CLC Jairo Fernandes Cardoso. Retornava ao mar, após haver trabalhado em terra por alguns anos; sorumbático, era ele bastante aplicado, sem furtar-se pedir a mim, seu chefe imediato, os esclarecimentos necessários. Com o tempo, sentiu confiança em contar sua história: ao iniciar a carreira se apaixonara por uma moça com quem veio a se casar. Seu amor era tão intenso que ele optou por deixar as lides do mar e ir trabalhar em terra. Tiveram dois filhos, foram felizes. Mas as crianças ainda não tinham trocado os dentes de leite quando sua amada sucumbiu ante um câncer galopante. Ele só não enlouqueceu porque o dever de pai lhe impunha buscar forças onde julgava não as ter. Mudou a rotina, passou a acompanhar os filhos mais de perto. Com o tempo, conheceu uma professora da escola dos filhos. A moça, por saber do drama da família, dedicava atenção à menina e, em especial, a seu irmão mais novo. Em breve, encantou-se pelo pai e o casamento contou com a simpatia das crianças que, na prática, levaram a professora para casa. Numa estadia, notei que a moça realmente tratava as crianças com maternal carinho, impressão confirmada quando fizeram a breve travessia entre Rio e Santos. Uma bela família: a mulher aprendera a viver com o marido que ainda trazia no peito o amor sofrido e saudoso do qual jamais pode ou quis se livrar.

De outra feita, passeava eu por Liverpool, a admirar as vitrines de uma loja de modas de noivas. Entrei, ante os olhares curiosos das vendedoras e notei uma menina de quem percebi um sotaque diferente. Olhares, risos... e me identifiquei como brasileiro saudoso de casa. A menina era irlandesa e escolhia um vestido de noiva para se casar... com um brasileiro; não só, brasileiro, mas oficial mercante, meu ex-calouro na Escola. Saímos e no café ela disse que iria morar com ele no Rio de Janeiro. Uma moça enérgica e corajosa que, em passant, revelou que os irlandeses não eram bem tratados na Inglaterra.

Anos após, vim a ter, ocasionalmente, com o colega no centro do Rio; narrei-lhe o ocorrido e perguntei se ele havia casado com a irlandesa. Havia. Tiveram dois filhos antes dela morrer, vítima da maldita enfermidade, e deixá-lo, viúvo, nas lides do mar e com duas crianças órfãs de mãe. Outro colega, mais jovem, casou-se com a filha de um comandante muito querido de nosso navio. Estava no mar quando recebeu a trágica notícia: a sogra, estranhando a ausência da filha e sem lograr falar-lhe ao telefone, dirigiu-se ao apartamento onde o casal residia. Ao soar repetidamente a campainha, tudo que ouvia era a voz excitada das crianças. Pediu auxílio. Arrombaram a porta e se depararam com o quadro dantesco: a casa totalmente desarrumada e as crianças engatinhando sobre o cadáver da mãe, estendido sobre o tapete. A esposa de nosso bom comandante sobreviveu muito pouco tempo à morte da filha; o velho capitão jamais se recuperou. Figure-se o sofrimento do jovem viúvo ao receber a notícia, em travessia e tendo de esperar que o navio alcançasse bom porto para que, só então, pudesse regressar para casa, não a tempo de sepultar a mãe de seus bebês, mas para com elas estar e apoiá-los.

Em regra, os casamentos da gente do mar perduravam para sempre; não falo destes matrimônios abreviados pela morte precoce de um dos cônjuges: a gente do mar valoriza(va) muito a vida familiar e tinha no lar o sacrossanto porto seguro de suas vidas. As esposas eram alcunhadas “Dona Maria” ou “Dona Encrenca” para os mais irreverentes. A maior parte dos homens do mar sofria, por demais, o afastamento, principalmente na saída do porto de casa. Mas o retorno se revestia de uma ansiedade gostosa. “Quero a alegria de um barco voltando“ disse Dolores Duran, de maneira genial. Cada chegada ao lar assumia ares de festa.

Decerto havia os “vidas tortas”, mas eram exceções à regra . Um deles, de temperamento irreverente, quase que irresponsavelmente extrovertido, assim se manteve até avançada idade. Gritava alto, nas “bocas” de Santos, que ia arrebentar Liverpool. Ao falecer, deixou, enlutadas, famílias com filhos, uma no Brasil e outra na Inglaterra.

Já narrei, algures, a discussão que tive de apartar porque o cabo-foguista Pitéu, marido compenetrado, ao descobrir que o infiel Fidélis - nome mais impróprio! - tinha duas esposas, passou a xingá-lo de “safado e sem vergonha”; o bígamo, com olhar cândido tentou justificar narrando que, no Rio, havia casado pela lei dos homens enquanto, em Cabedelo, seu matrimônio havia sido contraído segundo a lei de D´us. Ao tempo em que eu já havia sucumbido à oferta de uma grande empresa e me tornado executivo na capital das Minas Gerais, em visita ao Rio, fui ver um apartamento na orla, com a intenção de comprá-lo. A bela e elegante senhora mostrou-me o imóvel cuja decoração denotava fineza e bom gosto. Sobre um aparador, deparei-me com o sorriso galante daquele Chefe, emoldurado pelo uniforme branco e as platinas de oficial mercante. Em vida, fora um líder, culto, inteligente, corajoso, amado por todos, o olhar brilhante, o raciocínio rápido e cativante.

- Quem é este senhor? - perguntei o que já sabia...

Ela disse tratar-se do amor de sua vida, seu marido, afirmava. Narrou que o conhecera numa viagem de navio.

- Eu estava a bordo, minha senhora! – atalhei.

Ela entendeu que eu captara toda a história. Vi nascer o romance e soube que, no funeral do líder e mestre, os amigos tiveram de realizar manobras de puro malabarismo, de modo a permitir que ambas as esposas se revezassem, sem saber - ou fazendo que não sabiam - o que estava acontecendo à beira do caixão, quando o galante marinheiro desembarcou deste mundo.

Acompanhei o drama de um rapaz quieto, mais jovem, que engajou numa difícil faina comigo, em terra. Um dia, ele, normalmente acanhado, os olhinhos azuis brilhando, me disse: “chefe, não posso evitar; sou casado e o destino deve estar brincando comigo. Todo dia nossos olhares se cruzam no trânsito; ela é médica, já sei. Uma hora crio coragem... “ O relacionamento foi levado adiante, da maneira mais sofrida. A “titular” descobriu e ele foi morar com a moça. Não sei se chegou a manter os dois relacionamentos simultaneamente. Mas ao voltar ao mar, morreu num trágico acidente a bordo. Fui a seu sepultamento. As mulheres, de maneira discreta, também se revezaram à borda do caixão, uma, pretensamente, a ignorar a presença ou existência da outra.

Outro grande amigo era um conquistador irrecuperável. Com dezessete anos seduzira a bela empregada de sua casa. Descoberta a traquinagem, o pai calabrês o fez reparar a honra da moça e ele já ingressou na Escola casado, com uma filha, o que era proibido; a moça era inteligente e sensata bastante e conseguiu mantê-lo na rédea do casamento por várias e tumultuadas décadas. Alto, nariz aquilino, era das pessoas mais cativantes; marinheiro nato, ainda jovem foi requisitado pelo rigorosíssimo e saudoso Comandante Aldo de Abreu para acompanhar a construção de um moderno navio de passageiros da Companhia Nacional de Navegação Costeira, em Bilbao, Espanha, nos anos sessentas. De rara inteligência e capacidade profissional, chegou a imediato daquele navio de luxo, onde desfilavam as mais belas e refinadas mulheres. Consta que o comandante Aldo teve de lhe puxar as orelhas de vampiro, espetadas naquela cara de pirata, principalmente no cruzeiro em que centenas de moças, hormônios à flor da pele, viajaram da América do Sul para Israel. Ele construía grandes e duradouras amizades a bordo, inclusive entre os influentes passageiros e passageiras. Nos anos setentas, já capitão de longo curso, foi contratado por um grupo norte-americano para trabalhar em terra, em condições remuneratórias e status excelentes. Vida que segue, após retumbante sucesso, alçou ousado vôo solo tornando-se empresário do ramo; mas não era só no trato com as mulheres que aflorava seu espírito de aventura: numa manobra mercantil ousada, nosso amigo veio a dar com os burros n´água. Tentei ajudá-lo, mas – jamais lhe disse - um colega de sua turma, quiçá por “medo da sombra” abortou a possibilidade dele assumir o comando numa grande armadora. Melhor para ele que, logo após, veio a arranjar embarque num navio roll on roll off, onde, ao operar na Holanda, travou contato com uma tecnologia inovadora e, pouco tempo depois, vindo a fundar uma próspera empresa, dela lançou mão. Mas, no espaço de tempo que permeou seu naufrágio como empresário e o embarque no navio roll on roll off , seu primeiro casamento malogrou. Divorciado da paciente mulher que o aturara desde os dezessete anos e lhe havia dado só filhas mulheres - ele explicava a razão de não gerar varões com um maroto “só faço o que gosto”- numa saída noturna, pousou os olhos numa bela e calma viúva que conversava num grupo de amigas. “Inibido”, aproximou-se, conquistou-as todas, mas só anotou o telefone da que o atraía como imã. Foi uma paixão fulminante. Suas filhas - do primeiro matrimônio - pediram meu “competente” auxílio, quiçá supondo-me “bandido” bastante para rebocá-lo de volta às aventuras. Elas estranhavam a inacreditável transformação do pai, que se mostrava, fiel, loucamente fiel, como se enfeitiçado. As meninas queriam o “pai-pirata” de volta. A segunda mulher, hoje viúva, até hoje o lembra com muita saudade.

Recentemente, numa manhã do último carnaval, vinha eu passeando o velho cão labrador pelas ruas do Leblon e, à minha frente, caminhava um casal de meia idade, mãos dadas, conversando animadamente, como dois adolescentes. O que será que falavam com tamanho entusiasmo? Apertei o passo e reconheci o OSM Rinaldo, mais jovem que eu. Mais de trinta anos de eterno namoro, filhos adultos: um casamento exitoso, como a grande maioria dos que conheci a bordo. Decerto havia os “vidas tortas”, mas eram exceção. Quanto a mim, ao ser apresentado por uma namorada ao consagrado maestro Bené Nunes, dele me tornei amigo; com sua louca sinceridade o Maestro Bené, um dos pais da bossa nova, disse à moça, intelectual maravilhosa:

- Bem (assim a chamava), ele vai te fazer muito feliz. Aproveita todos os momentos. Mas lembra que ele é marinheiro e seu coração não cabe dentro de uma casa. Um dia, ele vai embora, como chegou, sem brigar, sem avisar; sairá mansamente, assoviando, como entrou na tua vida: espero que guardes as melhores saudades.

Se falou assim é porque Bené me viu como seu espelho. Ao nos aproximarmos mais, ele estava `a capela, vivendo só em seu espaçoso apartamento de Botafogo. Arranjei-lhe uma eficiente empregada que lhe cuidava. Um dia ela nos liga dizendo que Bené se trancara no quarto; diabético, avisou que ia beber até morrer e que não queria ser interrompido. Ela supôs tratar-se de brincadeira. Não era. Fomos encontrá-lo no hospital, em coma, como quem dorme, aquele rosto vermelho de gringo, o bigodinho fino, bem aparado. Morreu e uma ex-mulher, a última, a mais jovem e a pior das muitas que ele teve, passara à imprensa que o falecido era o Benedito, fiscal de rendas. Ora, Fiscal da Receita Federal ele era, sem concurso, por obra e graça do “Imperador” Juscelino Kubistchek, que lhe garantira a tranquilidade econômica no ocaso da vida. Fulo, contatei os jornais e as emissoras de televisão. Ainda deu tempo de transformar seu funeral num happening ao qual compareceram nove ex-mulheres, inclusive a primeira, a doce Dulce Nunes, cantora, seu grande amor. Todas elas se entenderam, conversaram animadamente, lembraram o maestro em sua alegria e irreverência. Ominis definitio periculosa - toda definição é perigosa; os romanos já sabiam quão equivocado é rotular pessoas e situações. O Maestro Bené Nunes, pelo menos, de ofício, não era marinheiro; entretanto, na Marinha Mercante jamais tive notícia de alguém que possuísse um prontuário tão extenso, embora, jamais se possa inferir que o Maestro tenha tido ou mesmo procurado uma mulher em cada porta.

O amor verdadeiro ou putativamente verdadeiro, eterno ou não, real ou idealizado, correspondido ou frustrado, floresce ou fenece no coração dos homens e das mulheres, independente da Geografia, do Credo e, muito menos da profissão que abraçam. Mas sempre deixa um travo de saudade que nos faz rir das loucuras que nos leva a cometer, embriagados pelo sentimento ou pelo caminho que os sonhos prometem a nossas angústias. Mas isto é tango, e, afinal, tango é música que muito tem a ver com aventura, desventura e marinheiros que foram aquinhoados com a graça de viver amores intensos, felizes, duradouros ou breves. Amor não se define, amor se vive e não tem cura; tem fim ou não; a chama bruxuleia e se consome ou – que bom! - continua a brilhar na eternidade, quando menos, nos sonhos embalados pelo balanço do navio. Mas o amor marinheiro, esculpido na solidão sofrida, tempera-se na dor e gozo da saudade: não se esquece,  jamais.

* Publicada na edição de 15 de outubro de 2012 revista eletrônica do Centro dos Capitães da Marinha Mercante.


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O HISTÓRICO BRASIL x ESPANHA DE 62
Por Marcus Vinicius de Lima Arantes*


"O rancho da EMMRJ virou um pandemônio. Todos pulavam. Aqueles ovos inteiros zuniam no ar e se espatifavam nas paredes ou na cabeça de alguém. Naquele dia tudo foi relevado e ninguém foi punido por nada".


Amarildo chora após marcar dois gols na Espanha (Reprodução da internet)

Copa do Mundo do Chile de 1962. O país andino havia sido arrasado por fortes terremotos em 1960  e estava com a economia combalida. Seria difícil manter o compromisso de organizar uma Copa do Mundo nessas condições. Surge então a figura do responsável por esta organização – Carlos Dittborn, um brasileiro filho de chilenos e nascido no Rio de Janeiro. Dittborn adotou uma frase lendária – “porque nada tenemos lo haremos todo” – e conseguiu motivar e unir o povo chileno, arrecadando os recursos necessários para a realização da Copa. A frase ficava escrita no placar de todos os estádios onde os jogos foram realizados. Dittborn morreu um dia antes de começar a Copa.
O Brasil, quase que com o mesmo “timaço” da Copa de 58. Apenas duas modificações haviam sido feitas  – Mauro, o capitão, no lugar de Belini e Zózimo no lugar de Orlando. Espanha e Itália eram as duas magistrais seleções européias daquela Copa.  No time espanhol estava Ferenc Puskas, o excepcional jogador húngaro da famosa seleção magiar de 1954 que encantou o mundo. Com a invasão da Hungria pelos soviéticos em 1956, ele havia se refugiado na Espanha, se naturalizara espanhol e fazia parte do time comandando por Helenio Herrera. Neste elenco estava outro grande craque - o argentino Di Stefano, também naturalizado espanhol. Completavam o elenco de craques os magistrais  Santamaria e  Gento.
Pegamos a Espanha na 1ª fase. Foi o nosso adversário mais temido, não só pelo time que era, como também pela “tragédia” que aconteceu no lado brasileiro – não jogaria Pelé, contundido no jogo anterior. Seu substituto seria o novato Amarildo do Botafogo. O país todo ficou apreensivo com este jogo. Amarildo diria muitos anos depois que a única vez que tremera na sua vida foi quando soube que iria substituir Pelé naquele jogo. Para ajudá-lo e transmitir-lhe confiança, o já veterano Nilton Santos chamou-o no dia anterior ao jogo ao seu bangalô na concentração de El Retiro, em Quilpuê, Vinã Del Mar. – “Eles vão te desacatar. Finja que não ouve. Não queira também se fazer de Pelé. Seja o mesmo Amarildo do Botafogo”..
Chegou o dia do jogo. Estava eu no 2º ano da Escola de Marinha Mercante do Rio de Janeiro. A novidade da época eram o rádios portáteis importados. O mais popular era o “Spica”. Havia também os modelos menores que cabiam no bolso. Era por volta das quatro ou cinco horas da tarde. Radinhos colados ao ouvido, começa o jogo e a Espanha abre o placar aos 35 minutos através de Adelardo. Fisionomias tensas ante a expectativa de uma derrota anunciada.
Chega a hora do pôr-do-sol. Nas unidades da Marinha é hora de arriar a bandeira. No hasteamento pela manhã não é necessário, mas na descida da bandeira à tarde o cerimonial exige guarnição formada. Fomos para a formatura. A Espanha ainda ganhava de 1 X 0. Os radinhos estavam agora no bolso do uniforme com os “egoístas” passando por baixo da camisa e chegando ao ouvido.  O 1º Ten FN Fonseca era o oficial de serviço e encarregado de comandar a cerimônia. Perfilado em frente ao mastro da bandeira, ele olha para o seu relógio e comanda o 1º sinal. A seguir repete a consulta ao relógio e comanda o 2º sinal. Os alunos perfilados estavam tensos. Nos seu ouvidos,  a voz de Waldir Amaral -  “o relógio marca ..., 26 minutos do segundo tempo. Placar no Estádio Sausalito, em Viña Del Mar: Espanha um, Brasil zero... Bola com Zózimo, tem pela frente um contrário que é Perez, passa por ele, entrega a Garrincha ...”
 O Tenente Fonseca olha mais uma vez para o relógio, espera a hora exata do pôr do sol e finalmente comanda: “ - Em continência, arria”. Com todos em continência, a corneta inicia o toque e a bandeira começa a descer. Neste exato momento, lá no Estádio Sausalito, aos 27 minutos do segundo tempo, o novato Amarildo escora um cruzamento de Zagalo e estufa a rede da Espanha. Uma explosão de alegria acabou com a formatura. O Tenente ainda fazendo continência olha para trás estupefato e, quando entendeu o que ocorrera, fica em dúvida se pula também ou continua com a cerimônia.
Depois da Cerimônia da Bandeira íamos marchando para o rancho para o jantar. “Placar em Viña del MarBrasil uummmm, Espanha também uummmm ...”, continuava bradando o Waldyr Amaral, cada vez mais entusiasmado com a reação brasileira. Chegamos ao rancho. Radinhos ainda colados ao ouvido, ninguém falava e a tensão aumentava com a aproximação do fim do jogo.
Neste dia foi servido aquele ovo inteiro cozido com casca, item do cardápio de Marinha que não “baixava terra” de jeito nenhum, como dizíamos nós. E Waldyr Amaral continuava transmitindo toda emoção da reação brasileira num final de partida empolgante: - “Tempo e placar no Estádio Sausalito – 39 minutos do segundo tempo, Brasil ummmmmm, Espanha ummmmmmm, Brasil no ataque. Bola com Zagallo, entrega a Garrinha ...” Aos 40 minutos do segundo tempo, Amarildo novamente,  ele, em quem ninguém depositava fé, recebe um cruzamento de Garrincha, balança novamente a rede da Espanha e decreta a nossa vitória. O rancho da EMMRJ virou um pandemônio. Todos pulavam. Aqueles ovos inteiros zuniam no ar e se espatifavam nas paredes ou na cabeça de alguém. Naquele dia tudo foi relevado e ninguém foi punido por nada.
É a minha lembrança daquele histórico Brasil 2 X 1 Espanha da Copa de 62, quando o grande herói do jogo foi um novato e o menos acreditado dos jogadores do excelente  time brasileiro.


* Marcus Vinícius de Lima Arantes, Oficial Mercante, autor do livro "Torpedo, terror no Atlântico".